quarta-feira, 28 de julho de 2010

Tudo pequeno


Absolutamente esmagado pelas palavras dos outros. Que se dedicava a dissecar. Nas aulas, em conferências, nas suas dissertações. Esforços sempre pequenos e vãos de se elevar acima da base.
Nunca seria nada. Nunca iria conseguir criar. Criar mesmo. A partir do nada. Para tantos, era tão fácil. Parecia tão fácil. Por isso, o seu ofício era o de escrever sobre as palavras dos outros. Servia apenas aquilo que outros já tinham dito. E tinha tentado. Muitas vezes. Encerrado no gabinete que lhe tinha sido atribuído. Tentava escrever. Dizer algo que nunca tivesse sido dito. Mas por cima de si, a olhar para o que estava na folha, estavam os outros todos. A sorrir com complacência. Era assim que ele os imaginava. A sorrir. Nem sequer um riso franco e limpo. Apenas um esgar ligeiro. E benevolente.
E deixava de haver possibilidade de grandeza. Ele e as suas palavras. Tudo tão pequeno. Ele e as palavras. Juntos e amachucados no cesto dos papéis.
E havia um percurso a fazer. Que ainda nem estava na metade. Isso também o esmagava. Começou logo a dar aulas, primeiro como assistente. Mas tinha a noção que isso não tinha acontecido por ser particularmente brilhante. Ou marcante. Tinha acontecido. Mas depois seguiu-se a pressão de dar provas. De ser merecedor. Nesses primeiros tempos, nem se dava conta. Tinha que se concentrar no trabalho. No método. Na disciplina. Nem se dava conta que o tempo ia escorrendo. E que ainda não tinha dito nada que nunca tivesse sido formulado. Descuidou-se com o passar do tempo. Foi leviano.
E agora tinha que dar mais provas. Por causa do tal percurso. E as aulas. E não conseguir encarar a insolência do olhar limpo dos alunos. Os olhos dele iam sempre para as janelas da sala. Para a abstracção do que existia lá fora.
O suplício durava noventa minutos. Que ele contava metodicamente. Era conhecido por ser pontual. Na entrada e na saída. Não havia rasgos, nem intervenções espontâneas, nem divagações depois das aulas ou nos corredores.
E estava para ali. Sentado a uma secretária. Como os outros todos. E ninguém iria dar por ele.
Numa das tardes longas em que se confrontava, angustiado, com a folha vazia, ouviu o som de algo a ser passado por debaixo da porta. Levantou-se. Eram folhas dobradas ao meio. Abriu-as. E leu tudo. E a tarde deixou de se arrastar. Quando terminou, olhou lá para fora e os candeeiros dos jardins já tinham luz.
Havia grandeza naquelas palavras. Por nunca terem existido antes. Algo que estava a nascer. E ele tinha o privilégio de assistir a tudo desde o início. Raiva. Muita raiva. Por não ter sido ele a escrever aquele princípio.
Passaram os dias. E, por fim, a época de exames. E não dar aulas. E um dia. Ao final da tarde. Quando se preparava para arrumar as coisas. Alguém bate à porta. Foi abrir. Uma das suas alunas do primeiro ano. Ainda de mochila. Ainda de sapatilhas. Ainda em construção.
Perguntou se podia falar. Ele tentou disfarçar a impaciência. No dia seguinte era mais conveniente, disse. E de manhã. Ela interrompeu-o. Tinha sido ela a deixar as folhas debaixo da porta. Queria saber a opinião dele. Não tinha dado a ler a mais ninguém. E precisava de saber o que era aquilo que tinha escrito.
Ele olhou-a sem reacção. Mas dentro, havia raiva. Era indecente. Ela ser bonita e inteligente. Era indecente ela ter uma voz. E ele não. Como é que ela se atrevia a crescer? A ser maior. Como é que ela se atrevia?
E então, ciente da crueldade do que iria pronunciar, disse-lhe que nada daquilo que ela tinha escrito era suficientemente interessante ou digno de ser lido. E que, se não houvesse mais nada, tinha mesmo que ir embora.
Ela fincou os dedos nas alças da mochila. A olhar para o chão. Depois levantou os olhos. Que estavam brilhantes. Por estarem prestes a encher-se de lágrimas. Mas conteve-se. Respirou pesada e prolongadamente. E disse que o tinha escolhido. E que ele não tinha sido digno. Que tinha sido pequeno.
E foi embora. Ele ficou à porta do gabinete. A olhar para o fundo do corredor longo e silencioso. Absolutamente confirmado na sua inferioridade.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Fragilidade


Há algum tempo que estavam a andar de carro. Em silêncio. Quase sempre em linha recta. Uma linha monótona que às vezes parecia apagar-se à frente dos olhos. E cada um com os seus pensamentos. Com as pessoas e os momentos e os temores e as expectativas de cada um. Pequenas parcelas que não são partilháveis. A que não se dá voz.
Estavam juntos há tempo suficiente para não olharem um para o outro. Para não atentarem nos gestos, nas variações da voz e do rosto. No entanto, estavam ali. A avançar com uma direcção definida. Para mais um dos sítios em que deviam aparecer. Obedientes aos códigos. Ele devia usar um fato preto, uma gravata discreta. E ela um vestido de cocktail que fosse suficientemente afirmativo para ser um vestido de noite. E as jóias deveriam ser escassas. Mas igualmente afirmativas. Escolheu uns brincos compridos de diamantes e um anel. Isso bastava. Para não ofuscar o vestido e os sapatos. Para as jóias não serem mais do que ela. Mas os olhos estavam carregados. A maquilhagem não tinha nada de submissão. Tinha acabado de se arranjar numa casa de banho de uma estação de serviço, a meio do caminho. Não gostava muito da ideia de passar horas devotada a compor a personagem. Havia sempre alguma coisa que era de última hora. Para retirar importância e gravidade ao que iria acontecer. Mas sabia que o sorriso nunca devia esmorecer. E que não podia ser demasiado evidente ou fácil.
Há muito que se habituara a ser exibida. Por ser uma conquista. Um dos feitos na vida dele. E à entrada, tudo seria escrutinado. Nela. Implacavelmente escrutinado. Seria verificada. O cabelo, a pele, o corpo dentro do vestido, as jóias, os sapatos. Tudo sem misericórdia.
E depois seriam recebidos por pessoas sorridentes e por outras que se lhes associavam, em busca de cumplicidade. Até que ele começava a afastar-se gradualmente. Enquanto ela era cercada por mulheres de sorriso persistente, consolidado, ensaiado. Conseguia aguentar durante alguns minutos. Já tinha aprendido a calcular a parcela de tempo em que atenciosamente respondia a perguntas ou falava de coisas que não eram significativas. No entanto, ela não se achava especial ou melhor. Não era isso. Acontecia que ela não estava ali. Estava sempre no momento de liberdade à frente. Quando pudesse vir cá fora, para poder fumar em silêncio. Ou quando se despedisse com um sorriso. Ou quando despisse o vestido e limpasse a pintura do rosto. Era aí que ela estava. Era aí que ela se via enquanto falava pausada e educadamente. Em frente ao espelho.
Assim que era conveniente, ausentava-se. Dez minutos de exercício de liberdade. Mesmo tendo a noção de que ali onde se movia, não era correcto fumar numa festa. Uma mulher, entenda-se. Mas contava com uma relativa complacência. Era apenas um pequeno defeito, no meio de tantas virtudes, pensavam.
E então, contemplava o silêncio. A ideia de silêncio à frente dos olhos. Apesar dos sons difusos de fundo. O tilintar dos copos, a música, um ou outro riso mais solto. Mas ali havia uma certa ideia de silêncio. E isso pertencia-lhe.
A música fazia-a deslocar-se. Abstrair-se de si. Não havia história. Havia aquele momento. Repetido desde há muito. Feito de uma solidão muito fugaz, roubada às conversas com os outros. Que existiam de uma maneira tão segura. Nada de estilhaços. Nem um só. Naqueles rostos que via de fora, pela janela, enquanto fumava lentamente.
E dentro dela, estava tudo estilhaçado. Mas tinha feito uma escolha. Não sabia que a seguir seria assim. Que ficaria quebrada por dentro. E cada vez mais bonita por fora. O que era pior do que deixar-se ir. E dar sinais dos estilhaços. Tinha feito uma escolha. Tinha que viver com isso. Mesmo que estivesse partida e não conseguisse juntar os pedaços. Era o preço. Que teria que pagar.
Um criado chegou junto dela com uma bandeja. Champanhe dentro de cristal. A liquidez sustentada por uma fragilidade de cristal. Não queria beber.
O criado deu a volta, para regressar à sala. E tropeçou. E no chão, pequenos cristais. Estilhaços. E o alvoroço no rosto do homem que tentava rápido limpá-los. E os olhares que vinham de dentro. De lá dos vidros das janelas.
O marido surgiu. Quando ela se preparava para ajudar. Para tentar juntar os cristais partidos. A mão dele no braço demoveu-a. Olhou para trás. E deixou-se levar para dentro. Para tudo o que viria depois. Em direcção aos dias feitos de passos e de gestos já consolidados. Era isso que ela conhecia. E não valia de nada juntar os estilhaços atrás de si. Era irreversível. Nunca seria inteira. Tinha escolhido não ser inteira.

sábado, 17 de julho de 2010

O milionário sem casa


Havia perdido a noção de casa. Não se recordava ao certo de quando ou como é que tinha acontecido. Mas a sua circunstância era essa. Para todos os efeitos, não tinha casa. Apesar de poder ter várias. E onde quisesse.
Viajava muito. Nunca ficava mais do que três dias no mesmo sítio. A bagagem era mínima. Dois fatos, duas gravatas, algumas camisas. Todas brancas. Por medida. Com as suas iniciais na etiqueta de dentro. E um livro. Sempre o mesmo. A Insustentável Leveza do Ser. No fundo, procurava a sustentabilidade da leveza. Pelo exercício do desprendimento. Por ter vendido todas as casas. Todos os carros. Por se ter desfeito de tudo o que o prendesse. E houve nisso muito de disciplina, de método. De esforço. Especialmente quando doou a colecção de arte do pai. Quando pensou nos anos e nas longas negociações. Mas ele tinha decidido que seria assim. Quase depois de ter perdido os pais. Era ele o único herdeiro. Por isso, as decisões pertenciam-lhe unicamente.
E não tinha filhos. Por ter sido uma evidência, desde muito cedo, que nem mesmo os filhos o poderiam resgatar da inevitabilidade da morte. Da finitude. Da sua finitude.
Nos primeiros tempos, pensou-se que ele tinha endoidecido. Que estava a perder capacidades, não obstante os seus trinta e cinco anos. E depois passaram a olhá-lo como um excêntrico. Ele compreendia que as pessoas precisavam de ordenar os comportamentos. De lhes atribuir uma motivação próxima. E uma etiqueta. Como a das suas camisas brancas. Ele compreendia. Mas não se importava minimamente com o que pensavam das suas decisões. Por mais insólitas que elas fossem.
Mas os negócios prosperavam. E de alguma forma, isso acabava por tranquilizar todos os que se haviam preocupado com a possibilidade de dissolução de uma fortuna tão vasta. E ia viajando. Era o que sabia fazer melhor. Depois de saber fazer dinheiro.
Tinha chegado a Milão ao final da tarde. E tinha sempre a mesma sensação, enquanto era conduzido ao hotel. O de fazer um percurso cinzento, industrial, metálico. Até chegar ao centro de tudo. Das cores, dos brilhos, das montras cénicas e vertiginosas.
E quando chegava, o silêncio com que era recebido era revelador de hábitos, de rituais. Sabiam que ele gostava que houvesse flores frescas no quarto. Que era sempre o mesmo. E que pedia sempre o mesmo para jantar. Que era antecedido por um Kir Royal. Que devia ser preparado com o champanhe que ele escolhera previamente. Jantava sozinho, impecavelmente vestido. E em silêncio. Abominava o desperdício de palavras. Ou as pessoas que falavam demasiado alto. Depois, subia ao quarto e no dia seguinte levantava-se muito cedo, nadava durante meia hora, tomava um pequeno-almoço muito essencial e saía. Para fazer mais dinheiro.
De manhã cedo, a cidade parecia acabada de lavar. Liberta dos excessos da noite. E de dentro do carro, ele gostava de olhar os que a limpavam. Enquanto estava adormecida. Antes que abrisse os olhos. Enquanto se ouvia Song to the Siren, This Mortal Coil.
E por entre os uniformes cinzentos dos que varriam e recolhiam o lixo, surge um corpo frágil, num vestido muito curto e branco. E caminhava distraída. Com um cesto na mão. Tão ausente, que nem reparou numa boca de incêndio, bem no meio do caminho. E fez um rasgão na perna direita. Do cesto, soltaram-se frutas e vegetais e pão fresco.
Mandou parar o carro.
Ela olhava desconsolada para tudo o que estava espalhado no chão. E depois para a perna, que entretanto começara a sangrar. Ele tirou um lenço do bolso de cima do casaco e sem dizer nada, tentou estancar o sangue. Sem perceber porquê, ela não teve receio que um desconhecido lhe limpasse o sangue da perna. Ou que recolhesse as frutas e os vegetais que ela havia escolhido no mercado. E era tão belo que ele não dissesse nada. Que tivesse surgido. Só.
E o silêncio só foi quebrado quando ele disse que a levaria ao hospital, por causa do rasgão na perna. Ela não protestou.
Não houve perguntas. Havia música. It´s not up to you, Bjork. Enquanto atravessavam a cidade metálica que despertava em silêncio. E toda a fragilidade do mundo num rosto a olhar pelos vidros de um carro. Para fora. Ela não se atrevia a olhá-lo. A falar-lhe. Tudo nele aparentava firmeza, resolução. Apesar de se ter inclinado para tratar da ferida de uma desconhecida. Apesar da humildade que isso pressupôs.
Quando o carro parou, ele fez o gesto para sair. Ela colocou-lhe a mão no braço. Para o impedir. Em silêncio. E silenciosamente, ele desviou-lhe do rosto uma das ondas do cabelo muito livre, levemente indisciplinado, preso de forma descuidada com pequenos ganchos que eram borboletas em repouso. Depois abriu a porta, para a ajudar a sair.
Lá dentro, esperou que a ferida fosse tratada. E quando a viu ao fundo do corredor, o rosto dela era de um contentamento de quase infância. E o dele era de comoção. Pela dádiva, pelo que havia de gratuito, de graça na fragilidade do corpo que se aproximava devagar.
Ela quis agradecer. E disse que já estava tudo bem. Que iria para casa. E que já podia ir sozinha. E sem pensar muito, ele pediu-lhe para almoçar. Então, ela ficou em silêncio. E depois perguntou pelo cesto. Porque seria ela a fazer comida. Para que almoçassem. Só era preciso comprar pão fresco. Tudo o resto poderia ser aproveitado. E ele não protestou. Aceitou.
A casa dela ficava no centro da cidade. Perto das Galerias. Vivia por cima de uma loja de discos de vinil. Ele ajudou-a a subir as escadas. O elevador nunca funcionava.
E a casa dela era como ela. De olhar prolongadamente. Plena de detalhes. Torres de livros. Quadros no chão, encostados às paredes. Pequenos copos de água com flores. Peónias. Rosas japonesas. Narcisos. Hibiscos. Eram de muitas cores. Misturadas numa harmonia com sentido. E uma sala quase vazia, cheia de espelhos diferentes uns dos outros. Um tapete no centro. Uma jarra com rosas numa mesa junto à janela.
Ela pôs música. Cocoon, Bjork. E disse que era bailarina. Aquela era a sala dos espelhos e da música. Era a sala onde ensaiava a leveza do corpo. Depois, deixou-o. Disse que ia começar a fazer comida. Ele ficou só. Com a música e com os espelhos. E tentou imaginar.
Procurou-a. Tentou adivinhar onde seria a cozinha. Em pontos inesperados, havia sapatos. Muito bonitos. Em cima de livros. Nas estantes. No topo de revistas empilhadas. Muitos sapatos. Altíssimos. Achou estranho, mas acabava por fazer sentido. Eram tão bonitos, que mereciam ser contemplados.
Ouvia os gestos dela. Pressentia-se uma serenidade primordial. Nos movimentos. E à porta parou. Ela tinha apertado o cabelo. E estava descalça. De costas. A picar ervas. Um cheiro difuso a tomilho. A cebolinho. A salva. Em cima da mesa havia courgettes partidas e cenouras e aipo. Queijo parmesão para ser ralado. E vinho tinto. Em dois copos. Olhou para o aparador. Mais livros. Sobre comida. Chávenas de chá muito frágeis. Fotografias. Castiçais sem velas, de prata.
Ela estendeu-lhe um dos copos. Com um sorriso. E pediu-lhe para ir para a sala. Gostava de cozinhar sozinha. Para que os gestos fossem ponderados. Era todo um ritual. O de transformar. O de recriar.
Ele obedeceu. Pela casa, a música que soava a início. Deu-se conta que não sabia o nome dela. E que ela não tinha perguntado pelo seu. Eram os dois sem nome. Sem história. Eram os dois um começo limpo. Bebeu o vinho demoradamente. Enquanto olhava as lombadas dos livros em torres. O aroma das flores misturava-se devagar com o cheiro a comida. Com o cheiro a casa. A casa dela cheirava a casa.
Ela veio buscá-lo. Os cabelos estavam livres outra vez. Tinha mudado de vestido. E já não estava descalça. Nos pés, uns dos sapatos que ele tinha visto. Era um cerimonial. E levou-o pela mão.
A mesa estava posta cá fora. Num pequeno terraço invadido de verde. Uma mesa branca. Com vista para a vida que acontecia em baixo. Na cidade. Mas isso agora era um lugar muito longe.
Ela tinha feito um risotto. Muito aromático. Sem que o parmesão contaminasse a untuosidade suave dos grãos de arroz. Nada perturbava. Tudo era harmonia. E uma salada. Com sabores que ele não conseguia decifrar inteiramente. E à mesa houve silêncio. Abençoado pela música que soava a início.
Quando terminou, levantou-se. E baixou-se. Olhou comovido para a perna ferida. E depois para o rosto. Voltou a afastar as ondas indisciplinadas do rosto limpo. E beijou-a. Uma dádiva. Depois olhou-a. E perguntou-lhe o nome.
Isabella.
E soube que ela era a sua casa. Onde quer que ela estivesse, seria aí a sua casa.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Resiliência


Sentou-se na mesa de sempre. E pediu uma água com gás e rodelas de limão. O cabelo apanhado, bem disciplinado. O rosto levemente maquilhado, blush, rímel e um bâton muito suave. O colar de pérolas da avó doida, que vivia sozinha na casa grande. E o anel que o pai lhe tinha deixado. Vestia uma saia muito curta em pied de poule e uma blusa de seda do armário da mãe. Os gestos eram muito polidos. O sentar sem cruzar as pernas, entendido como sinal de vulgaridade. As costas direitas, os cotovelos afastados da mesa. E o rosto impassível. O rosto nunca devia mostrar emoções extremas. Nem mesmo a tristeza incontrolável. Ou a exaltação. Isso nunca seria próprio de uma senhora.
Olhou para o relógio. E depois para a porta de entrada do restaurante. Tirou um caderno vermelho da mala e começou a escrever. Mas desconcentrada. Levemente agitada. E o olhar foi mais uma vez para a porta. E depois para o relógio. Começava a impaciência da espera.
A água com gás já tinha acabado. Primeiro pensou em pedir outra. Mas isso daria um pretexto para justificar a espera. E ela queria esperar sem pretextos. Para sentir por inteiro o peso da espera. Do arrastar impiedoso de cada minuto.
Como é que alguém se atrevia a deixá-la à espera? O pai sempre lhe disse que ela era uma pequena princesa. Delicada, de pele clara e olhos grandes, com pestanas longas. Lembrou-se de quando era pequena. Dos folhos dos vestidos, dos sapatos ligeiramente desconfortáveis, mas que lhe pareciam ser os mais bonitos do mundo. E do cabelo apanhado para trás. Sempre bem disciplinado.
O pai seria incapaz de a enganar. Se ele tinha dito que ela era uma pequena princesa, é porque era verdade. E ninguém deve deixar uma princesa à espera. As princesas são esperadas. Desejadas. Veneradas. Por isso, não conseguia entender aquela circunstância.
E ele chegou. Com o cabelo desalinhado e muito claro. Vestia uns jeans gastos e uma camisa branca de algodão. Sentou-se. E esquecia-se sempre de a beijar. Era ela que tinha de fazer o gesto. De se inclinar levemente. E não havia ali nada de imponderado ou de desesperado ou de irracional. Não tinha nada de primeira e última vez. Uma espécie de prolongamento tácito. Onde só subsistia a resiliência dela. A capacidade de aceitação, de resignação que havia nela. Ele havia de a amar. Um dia, ela iria ser imprescindível. E ele iria beijá-la como se fosse a primeira e a última vez. Como se fosse o princípio e o fim.
Ele pediu uma água tónica com muito gelo. E a seguir bebeu tudo de uma só vez. Depois olhou-a. Sem a contemplar. Sem procurar sondá-la. Como se nada nela fosse de adivinhar ou de interpretar. Nem mesmo o silêncio era inacessível.
"Eu não te amo." Foi o que ele disse. Pronunciado sem rede. Com crueza. A olhar para ela de frente.
A negação. A rejeição. O não. Ninguém devia ter que ouvir isto. Mas ela ouviu-o. E de nada valia a pele clara e delicada. E as mãos arranjadas. E o cabelo apanhado. E a blusa de seda e o colar de pérolas que a sufocava. As pérolas oprimiam-na. Tornavam o ar irrespirável. Como se o oxigénio se extinguisse devagar.
Tinha que se libertar. Tinha que respirar. Num movimento imponderado, desesperado e irracional, soltou-se. E as pérolas espalharam-se pelo chão. Para que ela respirasse. Ouviu-as a tocar o chão. Sentiu o colar a desmembrar-se. E o oxigénio a voltar. Muito devagar. Ele levantou-se. E afastou-se ligeiramente da mesa. Num esforço de interpretação. Fez um gesto para apanhar as pérolas. Ela ordenou-lhe que não o fizesse. Que tudo devia ficar como estava. A seguir, e enquanto o olhava em silêncio, começou a soltar o cabelo. Os ganchos e a fita. E o cabelo desfez-se em ondas castanhas, levemente ruivas. O olhar dela era duro. E o dele era limpo, como se a visse pela primeira vez. Como se nunca a tivesse olhado.
E aí ela levantou-se. E colocou-se à frente dele. Muito direita. Com o mesmo olhar firme. E foi ele que fez o gesto. Para a beijar. Mas desta vez ela não se inclinou perante ele. Desta vez ela recuou. Recusou.
Pegou na mala que tinha ficado na cadeira. Olhou-o mais uma vez e foi. A abrir caminho por entre as pérolas espalhadas pelo chão. E ali já não havia aceitação, resignação. Nem resiliência.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A condessa pobre


As janelas da casa estavam sempre abertas. Mesmo no Inverno. Mesmo nos dias em que chovia muito e fazia frio. Talvez já nem pudessem ser fechadas. De fora, pressentia-se a decadência do interior. Tudo havia sido vendido, espoliado ou despojado da sua existência imemorial. As grandes sebes de loureiro já não eram metáforas de disciplina e de simetria. Espalhavam-se, selvagens, pelos jardins abandonados pelas mãos dos homens que as cuidavam. As árvores muito velhas iam ganhando estranhas formas que afastavam as crianças e provocavam nos adultos a nostalgia do esplendor anterior à dissolução, à queda.

Por vezes, via-se uma mulher. Por entre os cortinados desbotados e cheios de pó. Surgia momentaneamente à janela. Depois desaparecia. Como uma aparição fugaz. Mas ela era real. Havia muitas histórias sobre ela. E muitas versões das mesmas histórias. Mas nenhuma era verdade. Os olhos dela eram de um azul baço e os cabelos claros, pouco cuidados. Nas poucas ocasiões em que saía à rua, usava uma espécie de turbante na cabeça, ou um lenço, de cores vivas. Pintava os lábios de vermelho. E usava uns sapatos verdes muito altos e ligeiramente desbotados.

Sabia-se que era pobre. E que era uma condessa. Uma condessa pobre, que se alimentava de comida enlatada. Comprada no supermercado construído numa parte da sua antiga propriedade. Vendida, para garantir dinheiro para mais uns anos de vida. Era uma figura excêntrica. Que usava peças de roupa sobrepostas. Vestidos e casacos de cores fortes. Tudo muito misturado. Tudo muito confuso. Como se quisesse usar todas as roupas e todas as cores de uma só vez. E o cabelo oculto. Com lenços berrantes.

Tinha sido rejeitada. Há muitos anos atrás. No dia do casamento. Ele não apareceu. E ela ficou à espera. À espera. Com o vestido escorrido. Primeiro, foi consolada. Pelas mulheres. Os homens guardaram distância. Mas a pouco e pouco, todos foram embora. E ficou ela. E as mesas da festa. Os copos de cristal. Os talheres de prata. Ordenou que nada fosse limpo. Ou arrumado. No jardim, as heras e a vegetação começaram a apoderar-se de tudo. Dos copos cheios de vinho. Dos talheres. Das loiças. A Natureza fez o seu caminho na festa eternamente cristalizada naquele momento em que ela foi deixada à espera.

Depois de ter dispensado os criados, subiu sozinha e lentamente a longa escadaria. Até ao quarto. Olhou o vestido. As pérolas. E o anel da promessa. Manteve-o no dedo. Era um sinal de promessa por cumprir. Usá-lo-ia sempre. Para não se esquecer que tinha sido recusada.

Durante muito tempo, concentrou-se em querer desaparecer. Nunca era vista cá fora. Deixou de ir às festas onde sempre tinha sido admirada e cortejada. E, lentamente, deixou de existir. De ser convidada. De ser lembrada. Talvez ocasionalmente alguém recordasse o escândalo da festa interrompida. Numa qualquer conversa circunstancial, não muito prolongada.

E um dia tentou o regresso à normalidade. Tentou vestir-se. Pintar-se. E pentear-se. Os gestos eram pesados. Tudo lhe pareceu pesado e destituído de sentido. E já não sabia escolher a roupa. Ela, que sempre tinha sido reconhecida por isso. Por saber exactamente o que vestir. Que brilhava nos vestidos mais certos, em cima dos sapatos mais elegantes. E ninguém tinha umas pernas tão perfeitas.

Depois de sete anos de reclusão voluntária, saiu à rua. E suportou os olhares e os murmúrios e a curiosidade alimentada por mil histórias. Subiu dignamente a rua principal da vila. Apercebeu-se das vozes e dos olhares atrás de si. E suportou.

O cabelo estava sem corte. Queria ir arranjá-lo. Não sabia muito bem onde ir, por isso, entrou no primeiro salão que viu. E quando entrou, a agitação que tinha ouvido de fora, cessou. E os olhares convergiram nela. Naquela figura estranha, vestida de lilás, com uns sapatos verdes e desbotados. Olhou-se num dos espelhos. Estava excessivamente maquilhada. O espelho do quarto não lhe tinha devolvido a verdade. Diz-se que os nossos espelhos são benevolentes. O dela mentiu-lhe.

Grotesca. Sentia-se grotesca. E, antes de dizer fosse o que fosse, saiu para a rua. Agora, já não conseguiria descer a rua com dignidade. Sentia nos olhares a confirmação do que tinha visto no reflexo do espelho. Baixou os olhos. Tentou chegar a casa. E fechar as portas. Mas abrir as janelas. Para sentir o sufoco do calor no Verão e o frio seco do Inverno e a doçura dos cheiros na Primavera e a nostalgia do Outono.

Desse dia em diante, só saía ao final do dia, quando a luz começava a desaparecer. Pouco antes da hora de fecho do supermercado. Para comprar latas de comida. Para si e para o gato. Que não tinha partido. Que não a abandonara. Depois, voltava a casa. Não havia luz. Por isso, vagueava durante a noite pelos corredores e pelas salas vazias, com uma vela acesa. Passava pelas janelas. Que emolduravam a vida cá fora. Tudo aquilo que tinha continuado a existir. Apesar da sua tragédia.

E ninguém deu conta da sua morte. Só o gato, num miar contínuo e pungente, quase humano. Junto ao corpo não celebrado da condessa pobre.






quinta-feira, 1 de julho de 2010

Angústia



And then the terrible thing happened. Não conseguia escrever. Tudo parecia já ter sido dito. Por ele ou pelos outros. A angústia de não ter uma voz. De não haver nada a dizer. E a página limpa, todos os dias. Apesar de se ter disciplinado. Apesar de acordar cedo, todos os dias à mesma hora. Apesar de ter deixado de beber, para que nada interferisse. Para que nada estivesse entre si e as palavras. Que nunca mais chegavam. Que nunca chegavam. Que eram sempre pequenas e previsíveis e fragmentárias. E não havia nem a libertação da tentativa. Nem esse consolo. Sentava-se à secretária. E estava tudo pronto. Deixava tudo preparado no dia anterior. As folhas ou o caderno e a caneta. A caneta era sempre a mesma. Herdada do pai. Só tinha que se assegurar que tinha cargas suficientes. Mas nos últimos tempos, a tinta parecia nunca chegar ao fim.
Quando tudo se tornava demasiado insuportável, vinha cá fora. Para olhar as pessoas. Sentava-se num café. Num que tivesse uma janela aberta para a rua. Que desse para ver as pessoas e imaginar as histórias de cada uma delas. Num desses dias, numa das mesas estava uma rapariga. Parecia muito jovem. E muito frágil. E estava a chorar. Silenciosamente. Enquanto olhava para o que pareciam ser bilhetes. De comboio ou teatro. Não dava para perceber à distância. Então, deu conta que estava a ser observada.
Levantou-se. E ao contrário do expectável, dirigiu-se à mesa onde ele estava sentado. Estava toda vestida de preto e era muito magra. Os olhos demasiado azuis tinham um traço negro, que entretanto se tinha espalhado e escorria pela cara. Perguntou se podia sentar-se. E depois disse que se chamava Alice e que não queria estar sozinha. Tinha vindo de muito longe. Para um concerto. E o namorado tinha deixado de ser namorado. E tinha dois bilhetes.
Ele ouviu. Pareceu-lhe que ela queria ser ouvida. Que queria dizer alto aquilo que sentia. Verbalizar a rejeição. Talvez. Mas não deixava de ser comovente. Ver alguém a chorar. Num café movimentado, no centro da cidade. Depois parou. Deixou de chorar. E foi lavar a cara. Ele continuou sentado, a olhar lá para fora, desconcentrado agora. Via as pessoas a passar em frente à janela. Mas já não pensava nas histórias.
Quando ela voltou, a cara já não estava tingida de preto. E o traço à volta dos olhos estava perfeito, bem delineado. Lembra-se de ter sentido um aroma leve. Cítrico. A tangerina, talvez. Manteve-se em pé e disse que queria oferecer-lhe um dos bilhetes. Mas que não era para irem juntos. Ela queria ir sozinha. Queria estar só. No meio de muitas pessoas. Ele achou que devia aceitar. E agradecer. Depois, despediram-se. E ele pensou que nunca mais a veria.
Ficou a olhar durante muito tempo para o bilhete. Massive Attack. Não conhecia aquela música. E escolheu ir. Chamou um táxi. Estava quase a acontecer. Cá fora, reparou nos homens de gabardinas pretas. Impassíveis. Em torno da arena. Como personagens de um filme de ficção científica. Sem expressão. E era muito escuro, aquele lugar. E, previsivelmente, as pessoas estavam em grupos, para se sentirem mais seguras, menos sós. Ele avançou até ficar próximo do palco. Talvez pudesse perceber melhor o significado de ter escolhido estar ali. Bem no meio de todos aqueles corpos. E da solidão que cada um deles carregava consigo.
E começou. Uma voz sussurrada. E um segundo de silêncio, antes da explosão da música. E dos corpos. Que se moviam de olhos fechados. Já distantes da noção de grupo. Sós. Muito sós. Inevitavelmente sós.
E viu-a. Muito quieta. No meio dos outros corpos. Com os olhos abertos. E a chorar. Outra vez. Há um rapaz que se aproxima. Que se coloca à frente dela. E a olha durante uns segundos. Depois tirou a t-shirt. E, devagar, secou-lhe as lágrimas. Enquanto a música crescia. Enquanto todos os outros corpos permaneciam indizivelmente sós.
Sentou-se à secretária. Olhou as folhas, a caneta. E fumou. Absolutamente concentrado no queimar lento do cigarro. E durante a noite escreveu como se a morte estivesse perto. E precisasse de dizer tudo. A raiva, o amor, a fúria, os homens, as mulheres, as árvores e as pedras. E os corpos.
Assim. Até gastar as palavras. Até gastar a tinta.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma substância absolutamente infinita


Deus é uma substância absolutamente infinita. Constituída por infinitos atributos. Cada um dos quais, infinito no seu género.
Absolutamente obcecado. Imerso em livros. Torres de livros. Já não chegavam as estantes, os armários, as mesas. Por todo o lado. Livros com títulos enigmáticos e incompreensíveis para os outros. Que só para ele eram evidentes.
Havia procurado o Deus de Espinosa no silêncio das igrejas. No corpo das mulheres. Na beleza. Na exaltação. E sempre nos livros. Sublinhados, assinalados, trabalhados.
Observava uma disciplina rigorosa, auto-imposta. Levantava-se cedo, tomava um pequeno-almoço frugal. Café e torradas com compota. Depois, pegava num dos seus lápis que não feriam os livros e começava tudo outra vez.
A empregada vinha a meio da manhã. Sabia que não devia perturbá-lo. Nem sequer para perguntar o que queria para o almoço. Devia fazer o que tinha a fazer. Em silêncio.
A casa era grande. Demasiado grande. Para um homem só. Não tinha casado. Não tinha filhos. E não trazia mulheres a sua casa. Era ele que as devia procurar. E nunca o contrário.
Os pais haviam morrido há muito tempo. Ele estava na faculdade. Um acidente. Havia dinheiro. Muito dinheiro. Ou o suficiente para ele nunca precisar de trabalhar. Ou o suficiente para poder ler até ao fim dos seus dias.
E viajava muito. Sempre pelo mesmo motivo. Sempre pela mesma obsessão. Deus é uma substância absolutamente infinita... uma substância absolutamente infinita. Tudo estava organizado para que nunca precisassse de se preocupar com pormenores terrenos, com tudo o que fosse pequeno e prático. O velho advogado da família aceitava com complacência as suas excentricidades e dedicava-se-lhe a tempo inteiro. Como um fiel servidor.
Sentia-se irmão de todos os que tinham a mesma busca. Mas nunca quis produzir nada. Nunca quis seguir um percurso. Apesar das insistências dos professores, dos convites das universidades. Aquela devia ser uma procura solitária e absolutamente livre. Nenhuma outra ideia o seduzia, senão a ideia da busca em si. Talvez por ter tido a noção, desde o início, que seria uma busca infinita. E completamente inútil. Absolutamente destituída de utilidade. Como tudo o que era belo.
O tempo ia-lhe marcando o rosto. E o lápis parecia um prolongamento do corpo. Tinha deixado de viajar, de sair. Os livros iam-se amontoando. Cada vez mais. A empregada já havia desistido há muito de disciplinar aquele caos. De devolver ordem fosse ao que fosse. Preparava as refeições e saía. Em silêncio.
Um dia, quando entrou, olhou para o tabuleiro do jantar. Intocado. Devagar e silenciosamente, foi percorrendo os corredores da casa, até à biblioteca, onde ele costumava adormecer. E estava lá. Ele estava lá. Caído no chão. Havia um papel manchado de tinta, ao lado do corpo sem sopro. "Deus está em..." Uma formulação inacabada.
O Deus de Espinosa estava nele. E no desejo que o movia. Que era a sua essência.


Para o Vasco.